sábado, 15 de março de 2014

Diario de uma Favelada – Quarto de Despejo (Carolina Maria de Jesus)






O duro cotidiano dos favelados ganha uma dimensão universal, na linguagem simples do diário de uma catadora de lixo.

Sua primeira edição, de 10 mil exemplares, se esgotou em menos de uma semana. A Livraria Francisco Alves, que publicou o diário depois de muito relutar, mandou rodar mais 90 mil exemplares que, em poucos meses, superou a vendagem do então recordista, Jorge Amado.
Mais do que isto: Carolina era uma favelada negra, semi-analfabeta, e seu trabalho tem causado grande impacto nos meios acadêmicos, até hoje. Carolina Maria de Jesus jamais poderia imaginar o poder explosivo que estava contido em seus diários !
O segredo do livro não estava exatamente sua qualidade, mas em sua originalidade. “Não chegava a ser uma obra literária propriamente dita, mas possuía momentos de grande força descritiva, de criação de imagens”, comenta Audálio Dantas, que deu nome ao livro a partir de uma frase criada por Carolina: “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. O título “Quarto de despejo”, retratava o modo como a escritora percebia a favela em oposição à cidade:
Talvez a data não seja lembrada pela maioria, mas há 50 anos, numa tarde de abril de 1958, Carolina de Jesus começava a escrever uma nova história para si ao ser descoberta pelo repórter Audálio Dantas, conterrâneo de Graciliano Ramos um dos maiores repórteres do Brasil, premiado pela ONU por sua série de reportagens sobre o Nordeste brasileiro publicadas na extinta Revista Realidade e atual vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa. Audálio foi o responsável pela compilação do diário que Carolina escreveu e em 1960 o lançou como livro, com o título”Quarto de despejo
O livro foi traduzido para cerca de trinta idiomas, vendido em mais de 40 países e merecendo sucessivas reedições com tiragens superiores a 100 mil unidades. Tornou-se um sucesso editorial, sendo traduzido em treze línguas e mais de quarenta países, vendendo cerca de um milhão de cópias em todo o mundo.
Os registros diários de Carolina de Jesus iniciaram-se em 15 de julho de 1955, sendo interrompidos em 28 de julho do mesmo ano e retomados apenas em 2 de maio de 1958. O livro se encerra com um registro feito no dia 1.o. de janeiro de 1960. Mas nem o formato de diário nem a descontinuidade cronológica prejudicam a estrutura narrativa.
Sua obra foi adaptada para teatro, rádio, televisão e cinema, sempre com grande sucesso. Até hoje, apesar de não ser muito conhecida em seu próprio país de origem, é a escritora brasileira mais publicada no Exterior, em particular nos Estados Unidos, sendo superada apenas por Paulo Coelho.
Carolina Maria de Jesus nasceu na cidade de Sacramento, interior de Minas Gerais, a 14 de Março de 1914, cidade onde viveu sua infância e adolescência. Era neta de escravos. Era filha de negros que, provavelmente, migraram do Desemboque para Sacramento quando da mudança da economia da extração de ouro para as atividades agro-pecuárias. Seu pai era tocador de violão e não muito chegado ao batente. Portanto, coube à mãe de Carolina, o sustento da família.

De Quarto de despejo a Le dépotoir, o processo de refração na reescrita do diário de Carolina Maria de Jesus:

Análise da obra da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), em particular dos livros Quarto de despejo diário de uma favelada (1960); Casa de Alvenaria diário de uma exfavelada (1961); Pedaços da fome (1963) e Diário de Bitita (1986). Investigamos aspectos da edição do primeiro livro publicado, analisando a intervenção do editor na construção do estereótipo da escritora favelada e o impacto que isso representou na trajetória discursiva da autora. Nosso objetivo foi analisar a internalização da experiência histórica da margem ao campo da dicção da obra literária, superando a introdução da temática, quase inédita na produção literária brasileira, da favela e da sobrevivência urbana marginal. A obra caroliniana, muitas vezes reduzida a mero documento de interesse sociológico, se realiza com contornos estéticos próprios a escrita é parte fundante de sua constituição subjetiva, pois a autora estetiza a si, cria para si identidade e alteridade, constrói sua subjetividade através da palavra escrita, tornando-se autora, narradora e personagem de si mesma.
Quarto de Despejo, diário escrito por Carolina Maria de Jesus, foi lido e discutido em treze idiomas, dentre eles o francês. A história da mulher negra e semianalfabeta que viveu na favela do Canindé, em São Paulo, foi divulgada pela primeira vez na França em 1962 sob o título de Le Dépotoir. Publicado no Brasil em 1960, após revisão do jornalista Audálio Dantas, Quarto de Despejo, tal qual os leitores o conheceram, em muito se difere dos manuscritos da autora. Apesar de sua pouca alfabetização dois anos de escola Carolina, graças ao gosto pela leitura cultivado desde a infância, deu vida a uma obra cujas páginas revelam uma linguagem singular: aos seus erros de ortografia e sintaxe, a escritora alia um vocabulário rebuscado. Na transposição dos manuscritos ao livro publicado, Dantas substituiu quase todos os termos cultos da autora por correspondentes coloquiais no intuito de reforçar o estereótipo da favelada que escreve. Ou seja, no trabalho de edição do Quarto houve a atuação de uma ideologia que buscou influenciar o modo como o público veria Carolina e leria seu diário. Andre Lefevere, em Mother courages cucumbers : text, system and refraction in a theory of literature (1982), explica que a refração é a adaptação de uma obra literária para um público diferente, com a intenção de influenciar a forma como o público lerá a obra. Nesse sentido, a tradução é indicada pelo autor como um tipo de refração. Partindo do pressuposto de que o livro publicado no Brasil constituiu uma refração do verdadeiro texto de Carolina, e de que, segundo Lefevere, o processo de refração se manifesta na tradução, as publicações do diário caroliniano em diferentes idiomas difundiram pelo mundo uma imagem ainda mais refratada da autora e de seus escritos. Nosso objetivo é, pois, analisar o texto de Le Dépotoir a partir da noção lefeveriana de refração, a fim de mostrarmos como a imagem de Carolina e de sua vida no Canindé foram refratadas no original e, consequentemente, no diário traduzido.
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